IA GENERATIVA E O PERFIL SEMIÓTICO-COGNITIVO DO LEITOR ITERATIVO

Por Lucia Santaella

A new type of reader is being born.Following the theory that was developed on the semiotic-cognitive profiles of the four previous types of readers – contemplative, moving, immersive and ubiquitous (Santaella 2004, 2018) – a fifth type of reader now emerges that I am calling ITERATIVE. In this article, his/her profile is outlined in comparison to previously existing profiles.

Guardo na memória que, antes mesmo dos anos 1980, ministrei alguns breves cursos para a formação de professores sobre o ensino da leitura. Nessa época, meu conhecimento de semiótica já havia avançado no caminho para o seu amadurecimento. Isso me forneceu elementos para propor nesses cursos uma expansão do conceito de leitura para além da leitura do código alfabético da linguagem verbal. Tanto é que, em artigo publicado sob o título de “Relendo o problema da leitura” (Santaella, 1980, p. 7), reclamava por uma releitura do conceito de leitura, ou seja, vencer a limitação de que só estamos lendo quando temos linguagem escrita diante dos nossos olhos. Reivindicava, então, que somos também leitores de formas, volumes, direções de linhas, traços, cores etc. Somos ainda leitores de gráficos, imagens, sinais, setas, números, movimentos, luzes.

            Anos depois, meados de 1990, instalou-se a cultura do computador que exigia o aprendizado dos processos de navegação nos espaços informacionais, mediados pelas telas. Foi por essa época que comecei a desenvolver a teoria dos diferenciados perfis semiótico-cognitivos de leitores. 

O ESTOPIM DA SURPRESA E A COGNIÇÃO

Tudo teve início com uma cena que presenciei com surpresa e que colocou curiosidades em minha mente. Casualmente observei jovens jogando games e a instantaneidade da destreza no manuseio do controle remoto, com a atenção perceptiva do ato de jogar em movimentos muito rápidos, impressionou-me. O que poderia estar acontecendo nos processos cognitivos daqueles jovens? A questão semiótica da cognição me fisgou e a transpus para os comportamentos, naquela época muito novos, dos modos como os internautas estavam começando a navegar nas arquiteturas dos espaços informacionais das redes que, então, eram batizados de ciberespaço. Imediatamente me veio a ideia de que se tratava da emergência de um novo tipo de leitor com um perfil cognitivo muito específico. Pensei, sem pestanejar, que se tratava de um tipo imersivo de leitor. Por acreditar que, para caracterizar um fenômeno novo é conveniente iniciar pela comparação com outros fenômenos de sua classe, retomei a modalidade tradicional de leitor, ou seja, o leitor de livros e, na continuidade imposta pela visão semiótica das linguagens, cheguei a um tipo de leitor no domínio das imagens em movimentos, que chamei de leitor movente (Santaella, 2004, p. 15-36).

            É importante não esquecer que a preocupação estava inteiramente voltada para as questões cognitivas implicadas em cada um desses tipos de leitores. O estopim acionado pela surpresa diante dos gamers dizia respeito à sincronia entre percepção atenta, o agenciamento célere concentrado na ponta dos dedos e as operações mentais, a saber, processos cognitivos que deveriam estar monitorando tudo isso. Mas o conceito de cognição  é muito complexo (Nöth, 2023).  

A questão é vastíssima e vale colocar ênfase em sua complexidade para que a cognição não se veja reduzida a uma de suas facetas como se fosse a única. Portanto, quando tratamos desse tema, sem que seja possível abarcar todas as facetas, torna-se necessário indicar quais são aquelas que estão sendo tratadas em função dos objetivos que estão guiando uma dada pesquisa. Neste caso, o interesse está voltado para o modus operandi do comportamento evidenciado na atenção manifesta, na gestualidade sensorial que a acompanha e no agenciamento mental que se revela nas transformações cognitivas que se operam visível ou invisivelmente nos dispositivos mediadores indispensáveis ao ato de ler.

OS TRÊS TIPOS DE LEITORES E SUA GRADUAL EXPANSÃO

A primeira publicação dos três tipos de leitores (Santaella, 2004, p. 15-36) provocou alguma repercussão em grupos de educadores preocupados, desde os anos 2000, com os efeitos pedagógicos provocados pela emergência da cultura do computador. Em função disso, inúmeras vezes fui levada a retomar e publicar sobre o tema. Uma vez que, para falar de um novo — e agora quinto tipo de leitor –, é necessário retomar os anteriores, torna-se inevitável cair em repetições de textos já publicados dos quais serão extraídos resumos no que se segue.

O leitor contemplativo

Esse é o leitor do texto impresso cuja prática acompanhou a história do livro, um tipo de prática que foi se tornando cada vez mais frequente a partir do século XVI e que se caracteriza pela leitura silenciosa, individual e solitária. Cria-se assim uma relação íntima entre o leitor e o livro. Paradoxalmente, tem-se aí uma relação de proximidade e de distância ao mesmo tempo, pois a leitura exige a reclusão para a concentração mental, mas exige também o desenvolvimento da capacidade de vivenciar situações e compartilhar pensamentos sem a necessidade da presença física naquilo que o texto evoca.

Do século XVI ao XIX, livros, enciclopédias e dicionários foram soberanos como meios privilegiados e quase exclusivos de transmissão do conhecimento, da literatura, das belas letras e da cultura em geral. Graças a eles, as universidades europeias floresceram.  Entretanto, sob efeito da revolução industrial e das novas máquinas de produção de linguagem que ela trouxe, a fotografia, o telégrafo e as rotatórias, essa soberania começou a sofrer a concorrência do jornal. A cultura livresca  passou, daí para a frente, a conviver não só com o jornal, mas também com a explosão das imagens em movimento no cinema. É nesse novo ambiente que nasceu aquilo que chamo de leitor movente.

O leitor movente


O leitor do jornal e o espectador do cinema estão longe de ter o mesmo perfil cognitivo do leitor contemplativo. Trata-se de um novo perfil cujo ritmo de percepção e atenção mudou de marcha, adaptada à aceleração e burburinho dos grandes centros urbanos. O que se tem aí é um novo tipo de leitor treinado nas distrações fugazes e sensações evanescentes cuja percepção se tornou uma atividade instável, de intensidades desiguais, leitor apressado da linguagem efêmera, híbrida, misturada que o jornal inaugurou, trazendo consigo um leitor fugaz, novidadeiro, de memória curta, mas ágil.

            Há uma isomorfia entre o modo como esse leitor se move na grande cidade, no movimento do trem, do bonde, dos ônibus e do carro e o movimento das câmeras de cinema. Um olhar retrospectivo nos releva que esse leitor movente foi preparando a sensibilidade perceptiva humana para o surgimento do leitor imersivo, que passou a navegar entre os nós e conexões alineares dos espaços informacionais da internet.

O leitor imersivo

Esse é o tipo de leitor cujo perfil se define como aquele que pratica estratégias de navegação pelas redes informacionais, ou melhor, pelas “arquiteturas líquidas do ciberespaço” (para usarmos a feliz expressão de Marcos Novac, 1991), estratégias que, em Santaella (2004) classifiquei de acordo com três categorias: a do navegador adivinho, a do detetive e a do previdente. Assim, o navegador adivinho era aquele que navegava em estado de errância, perambulando meio sem rumo pelas redes, fazendo descobertas e se alegrando com elas. O detetive era aquele que seguia as pistas de que as redes estavam prenhes. Por fim, o previdente era aquele que já conhecia todas as manhas do jogo.

É notável que a evolução célere da Web, com a invasão das rotas predeterminadas dos aplicativos, foi tirando do leitor imersivo as aventuras da navegação. Isso não significa que, embora distinto, esse leitor tenha deixado de existir. Basta observar qualquer usuário hoje tocando com a ponta de seus dedos ligeiros as rotas do seu smartphone, cuja chegada em nossas vidas fez emergir um quarto tipo de leitor.

LEITOR UBÍQUO, O QUARTO TIPO DE LEITOR

Por volta de 2012, quando já havia dado os primeiros passos no tema da aprendizagem ubíqua (Santaella, 2010), Cleomar Rocha, com o qual mantenho diálogo profícuo há anos, sugeriu-me a ideia de que, em plena era da mobilidade, deveria ser pensado um quarto tipo de leitor. Nasceu aí a teoria que passei a desenvolver sobre o leitor ubíquo.

É ubíquo porque está continuamente situado nas interfaces de duas presenças simultâneas, a física e a virtual, interfaces que reinventam o corpo, a arquitetura, o uso do espaço urbano e as relações complexas nas formas de habitar, o que repercute nas esferas de trabalho, de entretenimento, nas esferas de serviços, de mercado, de acesso e troca de informação, de transmissão de conhecimento e de aprendizado. De fato, com esse tipo de leitor, vem junto aquilo que chamo de aprendizagem ubíqua (Santaella, 2013, p. 285-308).

LEITOR ITERATIVO, O QUINTO TIPO DE LEITOR

Em uma live promovida em 26/06/2023, pela Universidade Federal de Uberlândia sobre “Inteligência em rede na educação superior”, de que participei na companhia de Mariano Pimentel, em um dado momento do diálogo, ele me sugeriu a ideia de um quinto tipo de leitor dotado de um perfil cognitivo próprio das interações que o usuário estabelece com a Inteligência Artificial Generativa (IAG). Evidentemente a ideia faz todo o sentido. Em coautoria com Felipe Carvalho, Pimentel (2023) publicou um artigo sobre o Chat GPT, no qual, ao final, o que chamam de leitor generativo é desenvolvido. Em concordância com o fato de que se trata de um quinto tipo de leitor, por razões a serem explicitadas abaixo, prefiro chama-lo de “leitor iterativo”.          

Evidentemente, acompanhar a proposta de um leitor iterativo implica certo conhecimento do modo como a IAG funciona. Uma vez que esse funcionamento foi desenvolvido em Santaella (2023, p. 33-44) e também no texto acima citado de Pimentel e Carvalho (2023), podemos passar ao cerne da questão que aqui nos interessa.

Iterativo não é a mesma coisa que interativo, embora ambos caminhem juntos. A interatividade tornou-se um tipo de agenciamento próprio da era digital que se desenvolveu a partir do leitor imersivo, tanto é que esse usuário também é chamado de interator. A interatividade, portanto, não é nova. Embora não deixe de ser interativo, o que é novo agora é o tipo de processo cognitivo que se desenrola no diálogo inédito que se estabelece entre um robô falante ou gerador de imagens e um ser humano. Neste caso, o agenciamento se baseia em um movimento mental de idas e vindas e insistências do usuário para se fazer compreender ou chegar aonde seus insights querem e o orientam. Quer dizer, um modo conversacional que traz as marcas de quaisquer diálogos não triviais entre humanos. 

Generativo é o caráter próprio do sistema, ou seja, das redes neurais que buscam responder aos estímulos que lhe são dados pelo interlocutor enquanto este insiste naquilo que busca obter. Isso significa que, quanto mais exigente for esse leitor, mais insistente ele será, portanto, mais iterativo será.

O processo iterativo é aquele que progride através de refinamentos sucessivos. O sistema generativo com que o robô é equipado reage de acordo com aquilo de que dispõe na dependência dos estímulos que recebe. Quanto mais iterativas forem as exigências do usuário em relação ao resultado que deseja obter, mais refinadas serão as respostas. Certamente, o que está aí em causa é o leitor ideal de que fala Eco (1979), quer dizer, um leitor capaz de responder ao potencial que um tipo de dispositivo (livro, filme, Web, smartphone e agora a IA generativa) lhe oferece. Em situações de uso concreto da IAG, portanto, de cognição situada, o diálogo cessa em função do ponto em que a iteração e exigências do leitor cessam.

            Há muitas questões a serem discutidas e assim o serão em artigo em progresso. A intenção deste breve artigo é lançar a ideia de modo a colocá-la em pauta. Por enquanto, para finalizar é preciso enfatizar que um tipo de leitor não substitui o outro. São perfis cognitivos diferenciados que tendem a se enriquecer mutuamente. Ademais, comparativamente, é curioso perceber que a invisibilidade das operações mentais do ato de ler, que são próprias do leitor contemplativo e mesmo do leitor de imagens, vai se tornando cada vez mais visível no leitor imersivo e no ubíquo pelos rastros semióticos que vão deixando de suas rotas de navegação. Agora, o leitor iterativo, nas suas interlocuções com o robô, deixa visíveis os compassos do seu pensamento.   

Referências

CARVALHO, Felipe; PIMENTEL, Mariano. Estudar e aprender com o ChatGPT. Revista Educação e Cultura Contemporânea volume 20, p. 1-21, 2023.

ECO, Umberto. Lector in fabula. Milão: Bompiani, 1979. 

NÖTH, Winfried. Semiotics of cognition and cognitive science: Crossroads. In BIGLIARI, A. (ed.). Open Semiotics, vol. 1: Epistemological and Conceptual Foundations.. Paris: L’Harmattan, p. 419-431, 2023.

NOVAC, Marcos ([1991] 1993). Arquitecturas líquidas en el ciberespacio. In M. BENEDIKT, M. (ed.), CAVER, Pedro A. G. (trad.). Ciberespacio. Los Primeros Pasos, México: CONACYT/Sirius Mexicana, 207-234.

SANTAELLA, Lucia. Relendo o problema da leitura. Cadernos PUC, n.º 8, p. 3-10, 1980.

_________________. Navegar no ciberespaço. O perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

__________________. A aprendizagem ubíqua substitui a educação formal? RECET vol. II, no. 1, p. 17-22, 2010.

________________. Aprendizagem ubíqua. In MILL, Daniel (org.). Dicionário crítico de educação e tecnologias e de educação a distância. Campinas: Papirus, 2018.

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