A sociedade digital e a agonia de Eros

Por Lucia Santaella

Assisti a uma palestra de Byong-Chul Han no último evento Transmediale, realizado em Berlim em janeiro de 2015 (outras reflexões minhas sobre isso: parte 1 e parte 2). Esse filósofo das mídias sul-coreano, radicado na Alemanha e atualmente na posição de professor na Universität der Kunte, em Berlim, está fazendo furor e provocando frissons nas sociedades europeias do capitalismo avançado, com a implacável crítica demolidora e cortante que dirige às “patologias psíquicas do pós-digital”, aliás, título de um dos capítulos de meu livro que está indo para a editora Paulus, SP: Temas e dilemas do pós-digital, do qual extraí alguns fragmentos no que se segue.

Para Han, vivemos em sociedades da exposição, da evidência, da intimidade, da revelação, do individualismo elevado a sua mais alta potência; em suma, sociedades pornô, nas quais os indivíduos se exibem e se desnudam em um gigantesco panóptico digital.

Panoptico

Panoptico – Jeremy Benthan

Como é bastante divulgado, o panóptico — estudado por Foucault e com base no projeto para o sistema penitenciário do jurista inglês do século XVIII, Jeremy Benthan — é um espaço que, a partir de um único centro, é vigiado pela onipotência de um olhar despótico. O que foi concebido como um espaço físico de vigia, Foucault percebeu como uma metáfora para os dispositivos disciplinares não só das prisões, como também das fábricas, escolas, manicômios, hospitais etc.

Quando ainda utiliza essa metáfora para caracterizar o funcionamento do universo digital, Han esclarece que neste desaparecem a distinção entre centro e periferia e qualquer ótica perspectivista. Esse é o trunfo da vigilância e do controle no mundo digital: a iluminação não perspectivista é produzida de todos os lados e de todas as partes. Os usuários se conectam e se comunicam, sem restrições de tempo e espaço. O que garante nesse caso a transparência é a hipercomunicação constitutiva do fato de que são os usuários, eles próprios, que colaboram na construção e conservação do panóptico, expondo-se nesse mercado exibicionista e voyeurístico. Nesse panóptico, a perda da esfera pública gera um vazio que acaba sendo ocupado pela intimidade e aspectos da vida privada.

Han aceita o rizoma como uma boa metáfora para caracterizar as redes, com a restrição de que as redes não são tão abertas e fora de controle quanto os rizomas. As redes formam, isto sim, um panóptico eletrônico, pois, sob a aparência de um espaço que promete liberdade, elas permitem controle total. Distintas do panóptico da sociedade disciplinar, agora o controle não se exerce pelo isolamento, mas pela interconexão. Em lugar da sociedade biopolítica disciplinar e de controle, o que se tem agora, nesse novo panóptico, é uma sociedade do psicopoder. A psicopolítica, com a ajuda da vigilância digital, está em condições de ler pensamentos e de controlá-los.

Nas redes, a ausência de limites à autoexposição atinge o clímax de uma nudez pornográfica. Quando a desinibição chega às raias da obscenidade, a liberdade se transmuta na violência da autoexploração. Um mundo que não mais necessita de uma cenografia, torna-se pornográfico, é que ele afirma. De fato, nas redes, tudo está exposto, descoberto, desvestido. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria para a devoração imediata. As coisas e as pessoas não desaparecem na obscuridade, mas na iluminação excessiva, desvanecem-se no mais visível que o visível: a obscenidade. À hipervisibilidade falta o oculto, o inacessível e o misterioso. É obscena a coação de entregar tudo à comunicação e à visibilidade. É pornográfico entregar o corpo e a alma ao olhar panóptico.

O capitalismo digital intensifica o procedimento pornográfico da sociedade na medida em que expõe tudo como mercadoria entregue à hipervisibilidade. O valor da exposição constitui o capitalismo consumado, em cuja lógica cada sujeito é objeto de sua própria publicidade. Além disso, à exibição direta da nudez de si mesmo falta a tensão erótica que exige o jogo da aparição-desaparição. O erótico pressupõe a negatividade do mistério e do recôndito, a curiosidade sobre aquilo que não está no aberto e que fisga o desejo. Por isso mesmo, vivemos em uma era que leva Eros à agonia. Com todos os espaços do corpo e da alma expostos sem constrangimento, a flecha de Cupido perdeu o elã do seu alvo. Não existe mais para onde atirar.

Temos que concordar com a maior parte dos diagnósticos de Han, mas ressalvas são necessárias. De fato, as redes, especialmente o Face e o Instagram, estão alargando o espaço tanto para o derramamento inofensivo e inconsequente da histeria feminina quanto para o destilamento do ódio dos agressivos enrustidos. Contudo, as redes não se constituem em um monolito da monodologia, como pensam alguns, nem se constituem tão só e apenas em um lugar de difusão da voz dos imbecis, como quer Umberto Eco.

Umberto Eco

Umberto Eco

Ao contrário, as redes são, na realidade, uma gigantesca arena de controvérsias, de práticas heterológicas; e, por que não, um fervilhamento de informações, algumas falsas, mentirosas, é verdade — mas outras inteiramente relevantes, em meio a um turbilhão de fast info que podemos descartar em um piscar de olhos. Além disso, a participação nas redes sociais com os fracos laços, que lá se desenvolvem, está regada de afetos e emoções leves ou intensas. Essa participação não substitui, não anula, nem exclui os laços fortes dos afetos que subsistem nas relações com o outro em presença. Muitas vezes, as redes até intensificam esses laços.

Tenho repetidamente afirmado que as redes sociais não podem ser avaliadas e recriminadas pelo comportamento aparente e externo de seus usuários. É necessária a vivência nos seus interiores e nas novas temporalidades e espacialidades que inauguram para poder avaliá-las. Como não sou aquele tipo de pessoa que fala, mas não faz, há décadas tenho dedicado minhas pesquisas e meus escritos ao exame da dinâmica das redes, pari passu às transformações aceleradas por que elas ininterruptamente vão passando enquanto existem.

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