Transmediale-2015 – Impressões 1

Por Lucia Santaella

Realizado de 28 de janeiro a 1º de fevereiro, o Transmediale 2015, evento hoje internacionalmente proeminente, por sua relevância reflexiva, criativa e bastante provocativa, teve início em 1988 e, desde 2002, é realizado nas instalações da Haus der Kulturen der Welt (Casa da Cultura do Mundo), em Berlim. Contando com palestras principais, painéis, mesas redondas, filmes, performances e exibições, é dedicado especificamente aos multifacetados temas presentes na cultura digital e nas artes midiáticas. Desde 1999, o Transmediale ocorre em paralelo com o CTM, um festival voltado para a música experimental, eletrônica e digital, assim como performances visuais e diversas atividades artísticas no contexto das culturas dos clubes de som. Ambos Transmediale e CTM visam a refletir sobre os recentes desenvolvimentos conceituais, sociais, artísticos e técnicos da cultura digital em sentido lato.

A Haus der Kulturen der Welt é um edifício monumental, cuja arquitetura em forma de concha perfila-se contra o horizonte graças aos espaços livres do entorno, o que revela um respeito soberano pela arte arquitetônica. Suas instalações, em todos os auditórios e salas, contam com tecnologias de som, imagem e iluminação de última geração. Tudo funciona com perfeição cronométrica. Em nenhum momento, nos cinco dias, no decorrer das mais de 12 horas diárias de apresentações, houve qualquer tropeço tecnológico. Nenhum deslize.

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Uma vez que decidi assistir ao maior número possível de apresentações do Transmediale, deixei o CTM de lado, já que a intenção era desenvolver um panorama mental do evento como um todo, que me permitisse sismografar o estado da arte do pensamento que tem sua mira na cultura digital. Nestas impressões-1, limito-me a transmitir apenas os aspectos comportamentais da audiência e dos apresentadores, deixando para o próximo post, nas impressões – 2, os comentários relativos ao conteúdo intelectual e criativo do evento.

Do ponto de vista da audiência

Mais de 90% do público consistiu de jovens, alguns muito jovens. Parece que o evento goza de grande apelo junto a esse público. Todas as apresentações estavam repletas de gente. Em algumas delas, quem não chegasse pelo menos 15 minutos antes do início, se quisesse assistir, tinha que se sentar no chão.

Na introdução do livro “Palavra e imagem nas mídias — Um estudo intercultural”, organizado em coautoria com Winfried Nöth e publicado pela Editora da UFPA (2008), resultado de uma pesquisa comparativa entre mídias brasileiras e alemãs, escrevemos que não há nada mais eficaz para enxergar nossa própria cultura do que a observação cuidadosa da cultura do outro. Vem daí este capricho em transmitir ao leitor brasileiro as impressões sobre o comportamento do público jovem alemão.

O que mais chama atenção é a total concentração dos ouvintes naquilo que ouvem. Ninguém cochicha, nem cochila, ninguém olha do lado; mais que isso, a grande maioria com caderno e caneta na mão tomando nota. Ouvir palestras sobre cultura digital e extrair notas em papel e caneta. Nenhuma contradição, apenas provavelmente a sabedoria de que tomar nota do que ouvimos, nesse meio pré-gutenberguiano, é ainda — e sempre — o caminho mais eficiente para a concentração mental. Ao final das palestras, quando é chegada a hora das perguntas, não se vê o êxodo da audiência. Ninguém se retira, todos ainda atentos ao que o palestrante tem a dizer.

Estou falando de auditório de conferências para mais de mil pessoas, das salas dos painéis para 300 pessoas e das salas de mesas redondas para 130 pessoas, todas sempre lotadas. Fora das salas, nos ambientes de descanso, muitos computadores abertos; mas. nas salas de apresentações, não se vê computador: eles desaparecem da vista e muito menos se veem celulares nas mãos. Um ou outro toma nota no próprio celular, mas isso é incomum. A impressão que fica da observação dessa extrema concentração de uma multidão em uníssono é de profunda admiração pela beleza que respira do respeito, curiosidade e, quem sabe, amor ao conhecimento.

No dia da abertura, o auditório estava apinhado. Da expectativa que minha experiência de brasileira me dá, imaginei que, nos dias seguintes, dia a dia, o público minguaria. Engano. Todos os dias, até a mesa de encerramento, para surpresa inclusive do próprio organizador, em pleno domingo à tarde — mesmo com o sol que brilhava em Berlim — e depois de uma semana cinzenta, lá estava o auditório repleto, de jovens!

Do ponto de vista dos palestrantes

Nas conferências principais, aquelas dos keynote speakers convidados, nenhum PowerPoint, nenhuma pirotecnia para fisgar a atenção de um público distraído. Nenhum showman ou showoman. Ao contrário, alguns leram, leram, leram (nenhum pecado, nenhum sentimento de culpa em relação a isso) direto de seu computador, outros, com papel na mão. A grande estrela da conferência, estrela que está brilhando atualmente nos céus da Europa, o sul-coreano alemão, Byung-Chul Han, soletrado como Pyŏng-ch’ŏl Han, levou isso às últimas consequências. Uma simples cadeira no meio do palco enorme, sentado, de frente para o imenso público, lia p-a-u-s-a-d-a-me-n-te, página a página. Cada página terminada era colocada no chão. Uma encenação minimalista bastante coerente com as ideias críticas que defende contra os sintomas da cultura digital.

Outro aspecto digno de nota: a pontualidade com precisão extrema do público e dos apresentadores. O lema do evento era: last to leave & first to arrive. Funcionou, pois, no exato momento estipulado na programação, tinha início o vídeo de uma bela cachoeira, em uma paisagem que bem podia ser brasileira, e lá vinham os números 10-9-8-7-6-5-4-3-2-1… todos a postos, sempre contando com uma breve apresentação do conteúdo da conferência ou do painel pelo jovem diretor artístico do evento, o sueco Kristoffer Gansing. O tempo determinado para cada apresentação era obedecido com precisão de segundos. Uma hora é, de fato, uma hora, meia hora é, sem erro, meia hora, 15 minutos soam em 15 minutos. De onde vem esse milagre? Da previsão necessária dos palestrantes em respeito aos organizadores, aos ouvintes e à programação. Não é por acaso que tudo funciona. Não é por acaso que se pode sair de uma sessão e passar para a outra, na certeza de que aquilo que está programado irá acontecer no tempo justo.

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Outro aspecto interessante para quem vem do hemisfério sul é a presença de todos os participantes previstos, sem ausências de última hora. A letra da programação fazia-se realidade, sem atropelos.

Para quem pretende assistir ao máximo possível de conferências, painéis, mesas e performances, em um transcurso de 10 horas seguidas por dia, tudo isso pode parecer excessivo e cansativo. Mas se praticarmos a ética da curiosidade e ela encontrar eco na ética da organização e do respeito à comunidade dos ouvintes, o tempo passa com leveza, enquanto as ideias fervilham na busca de tradução da fala alheia em fala própria.

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